ㅤㅤ ㅤEste era o pedaço de papel que o francês carregava em suas mãos. Seus olhos passavam pela inclinada caligrafia de seu tio Edgar, que morava em Estocolmo, juntamente com sua tia Ellen. O casal de trouxas era parisiense, no entanto se mudaram para a Suécia em busca de uma qualidade de vida melhor e, além disso, deixar a cidade que lhes recordavam a morte dos pais de Deko — era muito triste, pra eles, saberem que o casal que batalhara juntamente com eles durante os árduos momentos da Segunda Guerra Mundial tivessem morrido de um modo tão trágico. Foram, ademais, os únicos parentes conhecidos do auror desde a tragédia; possuíam um filho, chamado Lucas, bruxo, que vivia em Paris desde a sua graduação. Esses eram a únicas três pessoas que Deko se comunicara durante os quase 20 anos que estivera escondido, ali, em Oxford, em baixo do nariz de todos, mas bem seguro do olhar da mais astuta águia.
ㅤㅤ ㅤNaquele dia recebera sua carta e, pela primeira vez naquele ano, sentira vontade de atravessar a rua e respirar um pouco mais de ar. O estimulo fora tanto e, somando com a ausência de transeuntes naquele horário — o relógio já passara da meia noite —, continuara sua caminhada lenta, porém alerta para qualquer ruído ou aproximação. Vestia-se com uma calça cáqui, cinto de couro e camisa pólo verde. Por cima um suéter xadrez e nos pés um sapato de couro marrom bordô. Seu cabelo ainda era interino preto, porém sua rala barba lhe traía a idade: estava ficando velho. O vento lhe tocava a face e, como sempre, aquela sensação de liberdade — por mais que momentânea — lhe vinha à mente: que saudade ele tinha de poder caminhar livremente, sem precisar se esconder. Ninguém poderia saber sobre sua existência, jamais. Seria um escândalo um auror ativo ter praticado magia negra em seu passado... e que passado, ele recordou.
ㅤㅤ ㅤ— Poderia ter feito tudo diferente. — sibilou o bruxo. Apesar do desabafo, Deko não se arrependera de suas decisões: acreditava que aquilo fora necessário para moldar-lhe o caráter. Só detestava ter que permanecer recluso, apesar de que em alguns momentos se sentia reservado e podia pensar em paz: só que chega uma hora que, pensar durante anos, já lhe excedeu as vontades. O que por muito tempo fora uma calmaria, agora lhe incomodava; o silêncio já se tornava um eco...
ㅤㅤ ㅤEco este que permanecia... E, sem se dar conta, avistara ao longe a desolação de uma trama de seu passado. Já não bastara ter que andar pelas passagens de pedra que lhe lembravam de sua experiência assassina com Matt. — Ah, Matt... Cara, o que aconteceu com você? — Seu coração apertava. Não apenas Jason, mas também Matt fora um dos principais personagens da vida do bruxo que tornara: a existência de um peso para contra-equilibrar a balança era vital. Nos seus altos e baixos, o sentimentalismo de Deko traduzira a diferença de opiniões em necessidade de se lutar ao mesmo lado, de forma que em certo momento já não lutava mais para matar seus oponentes, mas fazer com que o inimigo vestisse sua camisa e que, então, defendessem a mesma bandeira. Logo, ao trespassar todo o vilarejo de Rock Village, deparara-se com Fallen Place, aquele lugar maldito cheio de recordações.
ㅤㅤ ㅤFora ali que caíra perante o Dolley, algo que não lhe deixara envergonhado. Estava louco e o loiro, sensato ou não, pôde por fim à loucura de Deko. Mas não era também como se fosse agradecer Jason por aquilo: ele lhe furtara algo muito importante, algo deveras sagrado para Càminn. Foram anos passados à sede de deixar aquele local e caçar seu último contato a fim de resgatar o que era seu.
ㅤㅤ ㅤAndara de forma calma entre o emaranhado de aço e concreto. Sentia ainda a vibração mágica, mesmo depois de anos passados. Sentou numa coluna caída, colocou os cotovelos sobre os joelhos e depositou a cabeça nas palmas das mãos. Olhava pro chão fixamente e, de modo profundo, pôs-se a meditar: ponderava sua relação com seus tios em Estocolmo, relembrava sua educação no Instituto de Magia Durmstrang e nos eventos de sua vida... até que o filme começou a se tornar monótono em dois cômodos, trancafiado às ordens do Ministério da Magia. Seus coração pareceu despertar depois de todo aquele tempo e um furor de juventude lhe veio aos lábios num ganido.
ㅤㅤ ㅤ— Argh, que merda de vida eu estou tendo?! Não agüento mais esperar! — e levantou-se num salto, dando um forte soco noutra coluna a sua frente. A raiva contida durante tantos anos lhe dera força suficiente para quebrar-lhe os metacarpos. Machucara a pele e deixara sobre o concreto invisíveis gotículas de sangue.
ㅤㅤ ㅤRetirara, pois, do bolso o papel de seu tio e limpara o ferimento. Abrira os dedos da mão boa e deixara a carta cair ao chão. Retirara a varinha do bolso e, com um agito, uma chama começou a queimar o papel. Era sempre assim que fazia com suas cartas. Virou-se e deixou aquele lugar que ainda ecoava o som daquele dia em sua mente.
ㅤㅤ ㅤO vento soprou e, com ele, levou o papel para o meio da destruição... o fogo se extinguiu e o recado, ainda intacto, permanecera legível para o sortudo que descobrisse aquela agulha, no palheiro que era Fallen Place.
ㅤㅤ ㅤO destino certamente planejava alguma coisa para depois deste acontecimento...